João e José eram meninos

O homem de terno que eu guardei o carro me disse que eu era uma criança carente, eu não sabia o que era ser criança, mas sabia bem o que era ser carente. Bem pequeno eu me dei por vencido pois assistia a tv quando esperava pelo resto de comida no bar do chinês na Carlos Gomes e olhava na tv tudo que acontecia com pessoas muito parecidas comigo, entre o resto de macarrão e um pedaço ou outro de carne que sobrava. Cresci um pouco e peguei força nos braços, um dia acordei do sonho que eu voava e vi que era natal pois a cidade se enfeitou, fizeram até  uma casa de Papai Noel com todas aquelas lindas mamães noel brancas que só podiam ter vindo do Polo Norte mesmo. No shopping também via que meninos podiam brincar no colo do velho de vermelho e eu não podia sequer entrar no shopping. Meus amigos da fonte do elevador, bem embaixo dos grandes ovos na antiga rampa, me disseram que o papai noel não existia e me deram, numa noite de pré natal quando estavam montando os palcos para o fim do ano, uma pedra de crack. Eu José não quis, mas eu João segui o que supostamente fora traçado.

Eu por nome João tinha agora outros nomes que me seguiam: saci, cracudo, ladrão... Eu acreditava piamente que Papai Noel existia sim e era um escroto a quem eu sequer pediria algo. Estava fazendo ponto do lado do vendedor de chapéus no centro, em frente do elevador, quando recebi um pacote com comidas, eu José segui, não sucumbi à fome profunda. Naquele dia não tinha tempo, era dia de recolher as latas e vender pra conseguir o pão de todo dia. Mesmo eu João no dia do pré natal não fumei o crack maldito,corri e tentei ao máximo me esquivar dele aquele dia. Sonhei que não tinha nada a não ser as minhas asas e acordei com o corpo gelado na madrugada solitária, nas mãos o embrulho que recebi pela rua, que sequer notei. Meti o pão com manteiga e o suco de caixa na sacola, eu João segui na busca por da pedra a panica, a bixa. Era a noite neste mesmo dia quando dei por fome e resolvi tomar o suco, tinha dois meninos mais velhos que a pouco se mudaram para a área e decidiram que tomariam os meus pertences, eu que só tinha as asas comigo  me protegi como pude e quanto o macarrão do chinês me ajudou naquela hora. Levantei num só pulo, vi os dois caindo minutos depois, lembrei da capoeira na rampa e com um ou outro soco cada um correu pro seu lado. Já seguia pra subir a Conceição quando um homem forte me chamou: - José, José! Pensei que era um parente dos meninos e acelerei o passo, no outro dia soube pela boca dos meus amigos que o professor de boxe da casa azul tinha visto a briga e queria que eu aparecesse pra treinar. Eu João não fui, mas eu José me apressei a ir.

Dois dias depois, com um saco preto carregado de latas vazias, pedi ao porteiro da festa pra entrar, mas não tive a permissão, tentei de todo jeito, mas pelo visto eu era mal visto. Fui revistado depois de muito e entrei na festa pouco antes dos fogos. Saí da festa logo depois de romper o ano, fui a praia, dei um banho no corpo sujo que carregava e me limpei. Senti a energia de tudo quanto e segui com os pés na areia. Depois, de volta ao asfalto, me senti na balaustrada, observei um bêbado que descia até o mar para molhar a cabeça, também as muitas senhoras e alguns homens de branco faziam o mesmo gesto cênico de abraçar uns aos outros, menos a mim. Estava no meio dos abraços, mas seguia sozinho e solitário, causando repulsa e descontentamento em quem se encontrasse comigo. Assim era eu ali na festa. Uma latinha azul, outra verde, uma branca, saí da festa contente, amanhã era dia. Um ou outro colar de ouro levei pra casa aquela noite, uma ou outra ofensa também guardei comigo. Naquela noite de festa fui seguindo um casal e vi um tiro lá na frente e corri. Não gosto de armas, nem de ladrões, morro de medo de que tenha sido algum amigo meu vítima da primeira morte do ano.

Eu José comecei a treinar boxe. Abandonei João, ele tentava voltar, eu resistia. João não voltaria, eu não perderia para ele, que era eu. Eu me apoiei na luva de meu professor, comi o pão que o diabo amassou  na vida, não fui à escola boa. Hoje, antes da luta, passei pelo moleque que me chamou pelo nome, José campeão, eu o olhei reconheci naquele moleque João. Era ele sim pelo olhar perdido, pelo jeito como ele estava sujo. Era sim João. Eu, apressado, segui, mas como a vida  de qualquer José que quer mudar o mundo procuro ele na baixa do elevador e trago ele pra academia, do prédio azul ou no stand up do Solar ou alguma atividade da Ladeira da Preguiça, mas amanhã com certeza eu tento encontrar o próximo José que vai mudar o mundo com as mãos. Só que João teve o azar de ter escolhido o graffiti e teve mais azar ainda pois foi pintar num muro baldio, pouco antes de uma exposição em um local da cidade onde ele tinha uma tela sua exposta. Eles diziam que o graffiti estava em alta e era tendência. João era menino e foi pego graffitando, tomou porrada, pintaram sua cara, torturaram com gás de pimenta, sem dar permissão de explicação. Ele era um criminoso, estava pintando um terreno baldio ou próprio -  quem sabe?  João tinha 12 anos e teve maxilar esbagaçado e pulmão perfurado. Quem matou João? Quem matou João? Assim acabamos mais um conto de natal e ninguém nem notou que ele não foi à exposição, afinal seu graffiti estava lá agregando valor ao evento. Quem se importa com João graffiteiro?



A culpa é de quem impõe as regras contra nós e nunca nossa. Nós que muitas vezes reagimos sem força própria, da nossa vida anêmica de exemplos. Mesmo assim, no meio desse furacão os meninos viram guerreiros e só por isso ainda não destruíram tudo, todos os lugares. Os moleques lutam contra os comedores de esperança sorrindo.

Inspirado nos dias de hoje. Todos os acontecimentos narrados aqui são um ajuntamento de experiências de muitos meninos que passaram a me contar cada um sua história.

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